segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O teu riso
















Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.


Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.


A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.


Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.


À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera , amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
aflor azul, a rosa
da minha pátria sonora.


Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

 
(Pablo Neruda - O reu riso.)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Durch Nacht und Flut

















Herz im Licht
Untragbar in Gestalt
Ich bin Dein Schatten
Du verbrennst mich nicht.

Herz im Geist
Das Leben neu versucht
Benutzt und abgelegt
Herz aus Stein.

Wach auf - ich suche Dich
Brich weit - mein Herz - ich löse Dich
Hoch aus - du Licht
Entflamme mich.

Zu Dir - ich weiss - ich finde Dich
Durch Nacht und Flut - ich spüre Dich
Ich hör Dich rufen - lese Deine Spur
Ich weiss - ich finde Dich
doch finde ich wirklich was ich suche?

Und wenn es Dich berührt
Im Beisein Dich verführt
Folgst Du den Händen
Die zum Tragen Dich erheben.

Und in den Händen
In diesen Armen
Beendest Du der Füsse Lauf
Und Deine Spur versiegt
jetzt und hier.

Wach auf - ich suche Dich
Brich weit - mein Herz - ich löse Dich
Hoch aus - du Licht
Entflamme mich.

Zu Dir - ich weiss - ich finde Dich
Die Suche endet jetzt und hier
Gestein - kalt und nass
Granit in Deiner Brust.

Der Stein der Dich zerdrückt
Der Fels der Dich umgibt
Aus dem gehauen Du doch bist.
Wach auf - ich suche Dich
Brich weit - mein Herz - ich löse Dich

Despiertate-te busco.
Mi corazon abreté- te libro.
Elevate mi luz y prende mi llama.
Si a ti ,yo se, te encontrare
a traves de los mares
te siento
te oigo llamar
leo, leo tus huellas
Yo se te encontrare
pero encontrare lo que yo busco
Lo que busco?
a traves de la noche
a traves de los mares.


(Lacrimosa, fonte: http://www.lacrimosa.ch/)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

José

















E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?



Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?



E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?



Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?



Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!



Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


(José - Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 15 de agosto de 2009

A QUEIMA DE LIVROS
























Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!

(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986. p. 194.)


quinta-feira, 11 de junho de 2009

GALOPE DE FLOR














Quando quero fugir das garras do mundo,
transformo em canoa as lembranças de outrora
e saio singrando saudades à fora
vivendo emoções de um passado fecundo
e o meu coração, albatroz vagabundo,
desperta, abre as asas e põe-se a voar
pela noite estrelada, planando ao luar!
E a minha canoa, de sonho e papel,
cavalga nas ondas qual bravo corcel,
galope de flor sobre as ondas do mar.
A minha canoa tem nome de flor,
bonita e altaneira Flor do Cajari!
É nela que guardo emoções que vivi:
retalhos da infância, de risos, de dor,
caminhos floridos, momentos de amor.
Então se a saudade vem me atormentar,
eu abro a janela e me deixo levar...
E nesse momento de extrema magia
meu ser se transforma em tropel de poesia,
galope de flor sobre as ondas do mar!
Em cada viagem carrego comigo
a voz do meu povo, a cor do meu chão,
o amor e a esperança na eterna ilusão
de um mundo mais justo, fraterno e amigo.
E sobre as marolas da vida eu prossigo,
se o sonho é possível, por que não sonhar?
Dedilho a viola e me ponho a cantar!...
Marujos forjados ao som dos banzeiros,
meus versos cavalgam, alegres, faceiros,
galope de flor sobre as ondas do mar.
Dirão, com certeza: o poeta está louco!
Mas louco, de fato, é quem não tem coragem
de um dia, na vida, empreender tal viagem
e às vozes do mundo fazer-se de mouco,
gritar poesia sem temer ficar rouco,
sem pejo, sem culpa, sem medo de errar.
Portanto, dê asas ao verbo sonhar,
embarque, depressa, na minha canoa
e vamos vogar por aí, numa boa,
galope de flor sobre as ondas do mar.

( Dr. Antônio Juraci Siqueira - Poema premiado na II Mostra de Literatura do Servidor Estadual )

sexta-feira, 29 de maio de 2009

ABRIR DE OLHOS















Pensamento dando para pensamento
Faz de alguém um olho.
Um é a mente cega-de-si,
O outro é pensamento ido
Para ser visto de longe e não sabido.
Assim se faz um universo brevemente.
A suposição imensa nada em círculos,
E cabeças ficam mais sábias
Enquanto notam a grandeza,
E a dimensão imbecil
Espaça a Natureza,
E ouvidos reportam primeiro os ecos,
Depois os sons, distinguem palavras
Cujos sentidos chegam por último
─Vocabulários jorram das bocas
Como por encanto.
E assim falsos horizontes se ufanam em ser
Distância na cabeça
Que a cabeça concebe lá fora.
O maravilhar-se, que escapa dos olhos,
Regressa a cada lição.
O tudo, antes segredo,
Agora é o conhecível,
A vista da carne, a grandeza da mente.
Mas e quanto ao sigilo,
Pensamento individido, pensando
Um todo simples de ver?
Essa mente morre sempre instantaneamente
Ao prever em si, de repente demais,
A visão evidente demais,
Enquanto lábios sem boca se abrem
Mundamente atônitos para ensaiar
O verso simples e impronunciável.

(Riding, Laura. Mindscapes - Poemas. Tradução: Rodrigo Garcia Lopes. Editora Iluminuras: 2004.)

NÃO POSSO ESCREVER DE TI














Não posso escrever de ti mais veridicamente do que tu mesma.
Não que eu seja incapaz por natureza, mas a verdade de ti, tu a escreveste.
E porque escrevias para só seres lida morta, porque eu a li, tu morta, e feita minha, esta verdade é a mais forte de todas.
Não poderei ultrapassá-la.
O que detenho de ti, o que me concerne a mim só, não é da ordem da verdade mas da física :
Tocar desde os joelhos até a fronte, gosto de cerveja na língua, perfume nos braços, embaixo, visão e voz, de longe, me queimam : circuitos que não serão obliterados, não por enquanto.
Isso é só meu, e com razão.
Não escreverei de ti senão minha própria altura.
Ou então deito-me e faço sombra.

(Roubaud, Jacques. Poetas de França Hoje. Seleção, apresentação e tradução: Mário Laranjeira. Editora da Universidade de São Paulo: 1996.)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A CORUJA DO HEGEL





















Já me recomendaram que começar um texto citando Hegel (Georg Wilhelm Friedrich, século dezenove, alemão, muito alemão) serve dois propósitos: criar no leitor uma expectativa de profundidade ou espantá-lo logo nas primeiras linhas, pois quem tem tempo para o Hegel hoje em dia? A você que continua a ler devo avisar que a tal profundidade não virá. Recorro a Hegel, ou à coruja do Hegel, para fins estritamente superficiais.
Hegel certa vez comparou a filosofia com a coruja da deusa Minerva, que carrega toda a sabedoria do mundo mas só voa ao anoitecer, quando não há mais luz para aproveitá-la. O que Hegel quis dizer (eu acho) é que qualquer período histórico só pode ser compreendido quando está no fim, e que a filosofia sempre chega tarde para explicá-lo. No fundo estava denegrindo o seu ofício. Ninguém tratou de interpretar a História com mais densidade do que Hegel, mas no fim todas as suas teses e todo o seu palavrório não passavam do voo tardio de uma coruja inútil, no seu próprio conceito.
Quando aquele outro alemão denso, o Marx, escreveu que os filósofos não podiam mais se contentar em interpretar o mundo e deveriam tentar mudá-lo, estava, sem citá-la, reivindicando um voo mais consequente da coruja e um aproveitamento mais prático da sua sabedoria. O que Marx propunha era que a coruja, voando mais cedo, vencesse o vasto abismo que separava a filosofia da política. Um abismo que não começara com Hegel mas existia desde que Platão, desgostoso com a execução de Sócrates, renunciara à atividade política. Marx recrutava a coruja para a sua revolução. Se todo o marxismo pode ser visto, algo simplistamente, como uma crítica de Marx a Hegel, o que mais diferenciava os dois era sua opinião sobre os usos da filosofia, ou sobre a relevância da coruja e suas explicações.
No fim o que Hegel diz com sua metáfora é o óbvio, que a gente vive para frente mas compreende para trás, e que nenhuma filosofia ajuda a percorrer o caminho já percorrido. Na sua crítica Marx sustenta que o caminho percorrido nos mostra para onde ir e que a filosofia é que diz isso para a História. Por mais atrasada que chegue a coruja.


Luís Fernando Veríssimo (Diário do Pará - 28.05.09)